QUAL A ORIGEM DO HOMEM? A CIÊNCIA EXPLICA!

QUAL A ORIGEM DO HOMEM? A CIÊNCIA EXPLICA!
O homem é um produto dos processos evolutivos e quanto a isso não há dúvidas para a ciência. Quando Charles Darwin (1809-1882) incluiu a espécie humana como parte da natureza, ele certamente provocou impacto no mundo todo. Até mesmo Alfred Russel Wallace (1823-1913), se recusou a assumir a ocorrência da evolução para a espécie humana, mas isso apenas à mente (faculdades morais, intelectuais e espirituais). Portanto, a evolução humana é um tema que naquela época gerou e ainda gera polêmica. Isto ocorre devido às inúmeras interpretações que podem ser apresentadas de forma equivocada, tanto em sala de aula, como durante a divulgação em meios de comunicação em massa, como a televisão, revistas, telejornais, internet, redes sociais, entre outros. Há uma certa dificuldade do homem se colocar como parte da natureza, pois possuímos algumas características pertencentes só a nós, como a capacidade de se expressar através da fala “articulada e complexa”, isto significa, basicamente, que os humanos fazem muitos movimentos musculares e de abertura e de fechamento da boca para produzirem muitas palavras e sons diferentes, com um vocabulário riquíssimo. Portanto, é necessário desconstruir alguns equívocos que são por muitas vezes disseminados pela sociedade como sendo uma verdade absoluta e este é o objetivo principal deste material, apresentar algumas ideias baseadas nas bibliografias citadas na ultima seção.
No menu é possível encontrar o item "Glossário", onde você encontrara explicações para alguns termos científicos utilizados no decorrer dos textos.
VIEMOS DO MACACO?
Esta é, geralmente, a primeira pergunta que ouvimos ao falar sobre a evolução humana, a resposta para a pergunta acima é SIM, mas para isso devemos considerar como macacos ancestrais àqueles pequenos primatas com cauda. Mas se considerarmos macacos ancestrais como chimpanzés, a resposta é NÃO, pois chimpanzés são primatas atuais ou modernos e não originaram os humanos e, portanto, a espécie humana não pode ser considerada como descendente de nenhuma das espécies dos antropoides atuais. A ideia de processo de evolução linear é representada na imagem 1. Além disso, o termo “macaco” é bastante vago, sendo aplicado a uma grande variedade de primatas.
A ciência indica que os humanos e os macacos do velho mundo, pertencentes ao clado Hominoidea, que reúne as Famílias Hylobatidae (gibões) e Hominidae (orangotangos, gorilas, chimpanzés e humanos) divergiram de um ancestral comum provavelmente entre 22,2 e 26,1 milhões de ano. Os humanos e chimpanzés compartilham um ancestral comum, um símio, que viveu entre 7,3 a 8,4 milhões de anos, representado na imagem 2. Após a diversificação das linhagens, cada linhagem continuou se diferenciando independentemente, portanto, a espécie humana atual não pode ser considerada como descente de nenhuma das espécies de macacos antropoides atuais.
Desde a origem dos primatas, eles se diversificaram em várias linhagens ao longo do tempo, e de uma dessas linhagens surgiram os Antropoides. Desta surgiu então uma linhagem que se diferenciou em inúmeras espécies e a que deu origem ao gênero Homo. Há cerca de 1,7 milhões de anos, o gênero Homo se expandiu geograficamente e se diversificou de forma rápida em várias espécies. A espécie humana moderna (Homo sapiens) possui muitas diferenças em comparação aos demais antropoides, isso é explicado pelo fato desses grupos terem evoluído separadamente em ambientes distintos durante milhões de anos. Essas modificações, que ocorreram gradualmente, não são visíveis por que após a rápida diversificação do gênero Homo houve primeiramente uma extinção dos hominídeos maiores e posteriormente de espécies regionais de Homo. Resultando, portanto, na extinção de todas as populações e espécies intermediárias e na sobrevivência apenas de nossa linhagem.

Imagem 1. Ao pensar em evolução, geralmente, esta é a ideia que se tem sobre a evolução humana. Esta imagem representa erroneamente a evolução humana pois passa a ideia de que a evolução é um processo linear. Fonte: <http://modduss.blogspot.com.br/>.

Imagem 2. Esta imagem representa de maneira mais correta a evolução humana, representando a ancestralidade em comum, ou seja, que humanos e demais hominoides possuem um ancestral comum. Fonte: PUC (2015).

HOMO SAPIENS, DE ONDE VEM?
A evolução da espécie humana representa uma pequena parte da história da vida na Terra. Entre 15 e 12 milhões de anos atrás a África Oriental começou a ser dividida, devido a forças tectônicas, formando o vale do leste da África (Rift Valley). Isto acarretou em dificuldades ao fluxo de nuvens de chuva, tornando a África Oriental cada vez mais seca e causando divisão geográfica de espécies. Este evento separou os ancestrais comuns dos chimpanzés de nossos ancestrais. Uma linhagem permaneceu na África Ocidental e originaram os chimpanzés atuais e a outra linhagem, que permaneceu no lado leste africano, na medida em que as florestas começaram a diminuir, esse ancestral comum deu origem a uma série de hominídeos bípedes (os australopitecíneos e hominínios). Entre os hominínios (Homo sp.) a única espécie a sobreviver até os dias atuais foi a nossa, Homo sapiens.
O primeiro Homo africano é chamado de Homo habilis e o primeiro Homo a evoluir fora da África foi o Homo erectus (figura 3), que colonizou a Ásia e a Oceania, mas não chegou à Europa. Um grupo de H. habilis permaneceu na África (com um clima seco e quente) e um grupo migrou à Europa (clima frio e úmido) se isolaram reprodutivamente um do outro, ocorrendo então o processo de especiação que deu origem a duas espécies: o que permaneceu na África originou o Homo sapiens (imagem 5), e o que migrou a Europa originou o Homo nenderthalensis (imagem 4), ambos com grandes volumes cerebrais. Os tipos de corpos dessas espécies serão mencionados posteriormente. Após a especiação do H. sapiens, estes migraram para fora da África e colonizaram todos os continentes.
Atualmente, na ciência existem três hipóteses para o surgimento do H. sapiens:
“modelo para fora da África”, e ela postula, portanto, que a espécie surgiu na África, como visto acima, e entre 100 e 200 mil anos atrás a espécie se irradiou por outros continentes, substituindo todas as espécies do gênero Homo que existiam. Nesta hipótese, podemos considerar que todos os humanos são descendentes de ancestrais africanos.
"modelo multirregional”, esta postula que a espécie H. sapiens tenha evoluído simultaneamente em vários locais do mundo derivadas da espécie H. erectus. Portanto, em cada local do mundo, segundo esta teoria, teria se originado da espécie H. sapiens que ali habitavam no passado. Esta hipótese é menos aceita.
“modelo de assimilação limitada”, que se baseia em estudos genômicos com DNA extraído de fósseis de ao menos duas espécies de Homo sp, uma delas Homo neanderthalensis. Os dados indicam que houve um certo grau de hibridação entre o H. sapiens africano com algumas espécies de fora da África, e que isso aconteceu na medida em que este migrava para tais continentes. Esta hipótese vem ganhando força nos últimos anos.
SELEÇÃO NATURAL DOS CORPOS
Corpos diferentes, pressões seletivas diferentes
Os pressupostos da teoria da Seleção Natural são a sobrevivência e a reprodução do indivíduo. Segundo esta teoria os seres vivos que conseguem sobreviver e reproduzir em determinado ambiente poderão ter suas características mantidas nas próximas gerações. Para compreender melhor o que seria a aptidão de um indivíduo, façamos uma comparação: em um ambiente contendo ambos os indivíduos, ou seja, os mais e os menos adaptados, podemos dizer que caso ocorra uma alteração em grande escala no ambiente, em média, os indivíduos mais adaptados terão maior sucesso na sobrevivência e reprodução do que os menos adaptados.
ESQUELETO HOMO ERECTUS

Imagem 3. Na foto acima, o esqueleto mostrado é de um indivíduo H. erectus, que vivia em climas quentes e secos, demonstrando as mudanças na estrutura óssea em relação ao clima. Ou seja, o corpo esguio e pernas longas, de certa forma, ajudava a desviar o calor e manter o corpo resfriado.
ESQUELETO HOMO NEANDERTHALENSIS

Imagem 4. Nesta foto é possível perceber uma estrutura óssea mais larga e com pernas curtas. Isto se deve ao fato do ambiente extremamente frio que esta espécie habitava. Portanto, o corpo largo e as pernas curtas são uma forma que aumentava a retenção de calor.
ESQUELETO HOMO SAPIENS

Imagem 5. Nesta ilustração do esqueleto humano é possível perceber uma forma intermediária entre as duas anteriores, isto se relaciona, de certa forma, com a irradiação dos primeiros humanos a diversos tipos de ambientes e climas. A mudança no tipo de dieta também teve impacto no formato corporal.
Fonte das imagens: Smithsonian National Museum of Natural History. Disponível em <http://humanorigins.si.edu>.
SOMOS DIFERENTES. SERÁ?
Muitas características compartilhadas entre os primatas, como as físicas, comportamentais e anatômicas (Imagem 6), têm influência do ancestral ter origem arborícola. A vida em cima de arvores é bem diferente da vida em solo. O ambiente arbóreo possui implicações como ser irregular e apresentar riscos de queda, enquanto que o ambiente terrestre oferece menores riscos de acidentes e maior capacidade de exploração do ambiente. Várias características são decorrentes deste tipo de vida:
• Extremidades capazes de “pegar” um objeto – Os primatas possuem um polegar opositor em relação aos demais dedos (a oposição de dedos também está presente em aves, e alguns lagartos como camaleões demonstrando um exemplo de convergência evolutiva), isso possibilita o movimento de pinçar com os dedos;
• A redução do olfato, devido a ancestralidade com animais arborícolas, pois este não é tão essencial a um animal arborícola como para um animal do solo;
• A acuidade visual entre os primatas, no geral, é uma das melhores do reino animal, juntamente com a acuidade visual das aves. Podem distinguir cores e a distância dos objetos devido a visão frontal estereoscópica (essencial a animais arborícolas, visto que animais com este tipo de vida necessitam se locomover de uma árvore à outra), enquanto que muitos mamíferos possuem uma visão lateralizada. A visão com a formação de imagens altamente resolutivas é possibilitada por uma área muito sensível na retina, chamada de fóvea, que converge a luz juntamente com o auxílio do cristalino;
• O desenvolvimento do cérebro, que será descrito adiante com maiores detalhes;
• O tipo de locomoção bípede também é uma característica que será mencionada posteriormente com mais detalhes, mas que não é compartilhada entre todos primatas;
• Outra característica, e não menos importante, foi a redução no número de filhotes por gestação. O nascimento de um filhote por vez possibilitou um maior cuidado parental, aumentando, consequentemente, a probabilidade de se chegar à idade adulta. Para compreender melhor isto, pensamos no caso inverso, no qual se cada ninhada tivesse vários filhotes, isto certamente reduziria o cuidado com os filhotes e as chances destes chegarem a vida adulta seria menor devido aos altos riscos de quedas e outros acidentes que poderiam ocorrer em ambientes arborícolas.

Imagem 6. A imagem acima demonstra um crânio de um ser humano (à direita) e de um macaco (à esquerda), as imagens mostram um pouco das semelhanças e diferenças entre as espécies. Fonte: Imagem cortesia de Ben Schonewille em FreeDigitalPhotos.net

AFINAL, O QUE TEMOS DE DIFERENTE?
Desde que se iniciaram as tentativas de sistematização dos seres vivos, os humanos foram incluídos no grupo das primatas graças as suas semelhanças morfológicas com macacos antropoides. Até mesmo Linnaeus (1707-1778) já havia incluído a espécie humana no grupo dos primatas. Certamente, as diferenças são muito pequenas quando analisamos as características moleculares e cromossômicas, mas existem algumas diferenças morfológicas, embora sejam poucas, que tornam possível distinguir o homem dos demais primatas.
Algumas diferenças que podemos citar entre o homem e os demais primatas antropoides (também chamados de primatas do Velho Mundo: gorilas, chimpanzés, orangotango, gibões e na qual o homem está incluso) são:
• A posição do forâmen magnum (local na base do crânio onde se encaixa a coluna vertebral) é direcionada a uma posição mais anterior quase no centro da base do crânio e nos demais antropoides esta abertura de ligação da coluna vertebral e do crânio está em uma parte posterior do crânio.
• O joelho do homem é direcionado mais internamente que os demais primatas, no geral, e são características derivadas do andar bípede e diferenciadas dos demais primatas, que possibilitaram colocar os pés no centro de gravidade enquanto caminhamos.
• No homem os ossos das extremidades inferiores (as pernas) são mais longos que de extremidades superiores (os braços). Já nos demais antropoides os ossos de extremidades inferiores são mais curtos que das extremidades superiores.
• A arcada dentária do homem em comparação com os demais antropoides possui uma redução da quantidade de dentes caninos. O tamanho dos dentes caninos do homem é do tamanho dos pré-molares, enquanto que os demais antropoides possuem presas grandes.
• A mandíbula do homem é curta e dos outros antropoides é mais longa e grande.
• A face é curta e em posição vertical ao cérebro, já nos outros primatas do Velho Mundo a face é longa e em posição à frente do cérebro.
• O tamanho do cérebro do homem é grande, e é uma das mais características diferenças, enquanto que nos demais primatas antropoides o tamanho médio é de 1/3. O desenvolvimento do cérebro humano é descrito posteriormente com maiores detalhes.
POR QUE SOMOS BÍPEDES?
Nós humanos temos a capacidade de andar com postura bípede, ou seja, sobre os pés e sem utilizar as mãos como pontos de apoio. Muitos animais utilizam a postura bípede durante períodos curtos para obtenção de alimento, fugindo de predadores ou explorando o ambiente como ursos, alguns lagartos e alguns roedores e alguns animais se locomovem de forma bípede habitual ou exclusiva, como as aves, o canguru. Entre as mais de duzentas espécies de primatas existentes, apenas a espécie humana é bípede habitual. A locomoção bípede está relacionada à vida em ambientes arbóreos de nossos ancestrais, o que os faz ficarem em uma postura sentada e com o tronco em uma posição mais próxima de vertical. Este tipo de postura nas arvores contribuiu para que a caixa craniana fosse rotacionada em cerca de 90°, alinhando a face de forma paralela ao tronco.
O registro fossilífero indica que primatas potencialmente bípedes existiam em ambiente de floresta, e que esta característica foi favorecida na medida em que os ambientes de floresta do leste africano foram se reduzindo e fragmentando devido às mudanças climáticas. Os primeiros hominídeos mostram que havia uma dependência cada vez maior do bipedalismo. Isto se deve a alguns indicadores como um encurtamento e alargamento da pelve, a coluna vertebral em forma de S.
O andar bípede teve grande importância para a evolução humana, pois possibilitou várias habilidades que proporcionaram melhor sobrevivência na terra, assim como alterou algumas estruturas e funcionamento do corpo humano. Ao andar de forma bípede, o corpo humano não necessitou mais respirar sincronicamente com os passos. Nos animais que caminham sobre as quatro patas as costelas são utilizadas para o movimento tornando difícil a respiração enquanto que nos bípedes os pulmões modularam a respiração devido às costelas terem deixado de serem necessárias ao andar e isto pode ter contribuído ao desenvolvimento até mesmo da fala.
Ocorreram várias modificações no corpo durante o processo de evolução (imagem 7). Os ossos da mão e os braços encurtaram enquanto que os membros inferiores se alongaram. Os ossos dos pés perderam a curvatura tão acentuada. O dedo hálux, popularmente conhecido como dedão não tem a posição de um polegar oponível como em demais primatas, possibilitando um maior suporte ao corpo em posição ereta. Todas as alterações corporais juntas possibilitaram o surgimento, por exemplo, da fala, crescimento e desenvolvimento do cérebro, manipulação de ferramentas, de atividades como o trabalho e da cultura humana no geral.
Nos humanos, a postura bípede evoluiu de uma postura quadrúpede, e muitos dos problemas de saúde que apresentamos à medida que envelhecemos pode ser explicada pela vulnerabilidade que as adaptações no esqueleto ocasionaram. Todo o peso que incidia sobre a cintura pélvica e escapular na postura quadrúpede passou a incidir apenas sobre a cintura pélvica, resultando em sobrecarga nos quadris, joelhos, pés e coluna vertebral, especialmente na região sacral. Estas partes do corpo que foram citadas são as que mais necessitam de tratamentos de fisioterapia e ortopedia.
Outro aspecto muito importante sobre a seleção dos hominídeos bípedes, é que o bipedalismo reduziu o custo energético da caminhada em comparação com nossos ancestrais semelhantes a macacos, ou seja, esta forma de locomoção é energeticamente mais eficiente do que uma locomoção quadrúpede dentre os primatas.
Algo muito importante a se destacar é que a locomoção bípede antecedeu o uso de ferramentas, ou seja, o andar bípede surgiu há cerca de 4 a 6 milhões de anos e o uso de ferramentas há cerca de 2,5 milhões de anos.

Imagem 7. Espécies de hominideos e hominínios que se locomoviam de forma bípede. Galeria de Evolução Humana no Museu Indiano (Fotógrafo: Biswarup Ganguly). Disponível em: <https://www.sapiens.org/evolution/autism-human-evolution/>.
POR QUE UM CÉREBRO GRANDE?
O ambiente de floresta que nossos ancestrais antropoides habitavam foi essencial ao aumento do tamanho do cérebro que ocorreu, juntamente com um aumento do córtex, que resultou na possibilidade de realizar movimentos precisos e premeditados, com maior sofisticação, além da inteligência e outras capacidades cerebrais. Nos primeiros hominídeos bípedes, os Australopithecus, embora tenha primeiro evoluído o bipedalismo, seus cérebros permaneceram relativamente pequenos, muito semelhantes, em volume, aos dos chimpanzés atuais. Isso parece ter ocorrido porque os primeiros bípedes ainda dependiam do ambiente de floresta para sobreviver. Ou seja, seus hábitos não sofreram grandes modificações. O problema é que eles tinham que caminhar mais para encontrar novos fragmentos de floresta para explorar, de acordo com o registro fóssil. Isto supõe que o bipedalismo é anterior à expansão do tamanho do cérebro e foi, portanto, fundamental ao desenvolvimento do cérebro.
Portanto, é importante mencionar os aspectos intrínsecos ao aumento gradual no volume cerebral que houve até o Homo sapiens (imagem 8). A capacidade craniana dos humanos aumentou significativamente em relação aos nossos ancestrais (imagem 9). O aumento do tamanho do cérebro ocorreu de forma lenta de 6 a 2 milhões de anos atrás, mas uma rápida expansão do cérebro ocorreu entre 600.000 e 200.000 anos atrás. O ambiente arborícola, muito importante para o desenvolvimento de várias características, possibilitou que permanecessem os indivíduos com grande capacidade de coordenação motora, ocorrendo gradativamente um aumento na área do córtex cerebral em relação ao cerebelo e o aumento do controle do córtex em relação ao cerebelo. Nos primatas, o córtex se tornou responsável por diversos movimentos mais sofisticados do que o caminhar bípede, que é controlado pelo cerebelo. O cerebelo é responsável por funções como o tônus muscular e movimentos básicos.
Este dramático aumento na capacidade craniana se iniciou entre 1,7 milhões de anos atrás. As diferentes estratégias alimentares do gênero Homo e do gênero Paranthropus, ambos derivados dos austrolopitecíneos, influenciaram a expansão do cérebro que ocorreu no gênero Homo. O gênero Pararanthropus tinha como estratégia alimentar a extração de tubérculos e outros recursos de origem vegetal, como folhas, sementes e frutos, devido a este tipo de dieta com alimentos duros os músculos masseter e temporal eram bem desenvolvidos, refletindo na presença de uma crista sagital no teto do crânio. Já o gênero Homo tinha como estratégia alimentar a ingestão de alimentos de origem animal e ricos em gordura e proteína. Esse tipo de dieta, contendo alimentos mais macios, ocasionou a redução dos músculos masseter e temporal no gênero Homo, removendo restrições evolutivas à expansão do cérebro, que pôde crescer nas regiões temporais do crânio além de fornecer a energia necessária para arcar com esse aumento do cérebro.

Imagem 8. O cérebro à esquerda pertence a Homo erectus e à direita de Homo sapiens, ilustrando o rápido aumento no tamanho do cérebro. Fonte: Smithsonian National Museum of Natural History. Disponível em: <http://humanorigins.si.edu>.

Imagem 9. Cranio humano representando o grande volume da caixa craniana. Fonte: Imagem cortesia de Morguefile.com.
A SIMBOLOGIA E A CULTURA HUMANA
Muitos animais possuem a capacidade de emitir sons e até formar vocábulos, como é o caso dos papagaios e o mainá. A diferença é que a espécie humana consegue não só produzir sons, mas também articular diferentes palavras a fim de transmitir uma ideia, ou seja, aquilo que ela está pensando. A capacidade de transmitir ideias e se comunicar uns com os outros deu início a um desenvolvimento cultural. Entre as diversas características da linhagem humana, a mais marcante é a capacidade de transmitir informações de uma geração para outra através da linguagem, contribuindo para a construção de uma cultura.
Cérebros maiores foram favorecidos em um ambiente ecológico e social cada vez mais complexo e, por que não, até mesmo por seleção sexual. Ao mesmo tempo, houve a seleção para nascimentos mais precoces, maior período juvenil e, por conseguinte, maior janela para a aprendizagem cultural, aquisição da fala, o que permite uma melhor transmissão dessa bagagem, aumentando consequentemente o período de aprendizagem cultural.
Até pouco tempo acreditava-se que a fabricação de ferramentas era recente na história dos hominídeos e que o aumento no tamanho do cérebro se deveu ao seu uso e confecção. Além disso, a tecnologia lítica sofreu pouca modificação durante o período de expressivo aumento no tamanho do cérebro do gênero Homo sp., somente se tornando mais sofisticada com as espécies mais recentes (H. sapiens e neanderthalensis). Verificou-se que outros animais, como o chimpanzé e macaco prego por exemplo, tem a capacidade de utilizar ferramentas naturais e até mesmo de adaptá-las a diferentes propósitos.
O uso do fogo pelos nossos ancestrais foi uma estratégia de adaptação ao frio, pois os eventos de migração ocorreram durante o período Pleistoceno, que possui pelos menos quatro grandes glaciações conhecidas. O uso do fogo possibilitou também o processamento de alimentos, como o seu cozimento, o que facilitou a sua digestão e forneceu assim mais nutrientes ao organismo, do que quando consumidos crus.
Até pouco tempo se achava que os H. neanderthalensis possuíam capacidades cognitivas abaixo das observadas nos H. sapiens, mas vários estudos recentes mostram que os neandertais (imagem 10) também produziam ferramentas complexas, pinturas rupestres e sepulturas com oferendas. Graças a estudos paleogenéticos dos genomas de neandertais, a comunidade acadêmica reconheceu o que antes era apenas uma suposição, de que ambas as espécies (H. sapiens e H. neanderthalensis) tenham convivido e se miscigenado. Humanos e neandertais eram espécies mais próximas do que se pensou, e provavelmente apresentavam capacidades de socialização e cognição semelhantes.

LUZIA: UMA (RE)DESCOBERTA EM MINAS GERAIS E NOVOS CAMINHOS
Segundo informações presentes no guia de visitação do Museu Nacional, Luzia era mulher com aproximadamente 25 anos de idade e 1,5 metros de altura. Essas informações só foram possíveis de serem definidas após um longo estudo dos restos do seu esqueleto. A idade foi possível determinar a partir da análise dos ossos de sua pelve (bacia) e sua altura pelo comprimento dos ossos longos.
Seu crânio (Imagem 11) foi recuperado em 1974 e 1975 na região de Lapa Vermelha IV, pela arqueóloga francesa Annette Laming-Emperaire que liderava a escavação. Por cerca de 20 anos, os restos de Luzia ficaram guardados nas gavetas do Museu Nacional do Rio de Janeiro. Até então só se sabia que o fóssil era muito antigo, mas não se tinha realizado nenhum estudo desses restos para obter maiores detalhes.
Por volta de 1990 o pesquisador Walter Neves teve acesso ao fóssil de Luzia, e conduziu um estudo comparativo com outras 45 medidas antropométricas do crânio, sugerindo que traços africanos para o rosto de Luzia (Imagem 12). A datação de carbono radioativo indicou que estes são os restos humanos mais antigos encontrados na América do Sul, tendo entre 11.000 e 11.500 anos e possibilitou sugerir qual a idade, sexo, altura e outras informações importantes.
A descoberta de Luzia foi de grande importância para a inferência da ancestralidade dos seres humanos. Com isso, as Américas são vistas como parte da primeira expansão de seres humanos anatomicamente modernos da África, iniciada durante o início do Pleistoceno Superior.
O que aconteceu com Luzia e seu povo até então era um mistério, mas no final de 2018 pesquisadores das universidades de São Paulo, Estados Unidos e Alemanha publicaram um artigo científico em uma prestigiada revista científica chamada Cell, na qual realizaram um estudo comparativo de DNA extraído de esqueletos fósseis. Os esqueletos foram encontrados na Argentina, Belize, Brasil, Chile e Peru. Antigamente não era possível extrair material genético de fósseis, mas a técnica foi constantemente aperfeiçoada. Com este estudo, os pesquisadores inferiram que povos da Cultura Clóvis (pertencentes a América do Norte, famosa pela produção de pontas de flechas polidas) migraram para a América do Sul e colonizaram por um tempo, mas à cerca de nove mil anos atrás ela desapareceu, e foi substituída pelos ancestrais diretos dos grupos indígenas que habitavam o Brasil durante o período colonial.
Segundo os pesquisadores, estudos baseados utilizando como marcadores genéticos são mais confiáveis para ancestralidade e origem geográfica do que uma análise baseada em traços do crânio.
Uma nova reconstituição do rosto de Luzia (Imagem 13) foi feita pela especialista em reconstrução forense Caroline Wilkinson, da Liverpool John Moores University, na Inglaterra. A reconstituição do rosto de Luzia representa os traços dos primeiros habitantes do Brasil.
No dia 2 de setembro de 2018, um incêndio destruiu o museu Nacional, mas pesquisadores conseguiram encontrar, nos destroços, quase todos os pedaços do crânio de Luzia.



IMAGEM 11. CRÂNIO DE LUZIA
IMAGEM 12. PRIMEIRA RECONSTITUIÇÃO DO ROSTO DE LUZIA COM TRAÇOS AFRICANOS
IMAGEM 13. CRANIO RECONSTITUIDO POR CAROLINE WILKINSON, DA LIVERPOOL JOHN MOORES UNIVERSITY, NA INGLATERRA.

ENTREVISTA COM PROFESSOR DR. NÉLIO BIZZO
Nesta seção está uma entrevista concedida pelo professor Dr. Nélio Bizzo, um especialista em evolução, onde ele responde algumas perguntas sobre evolução biológica, evolução humana e as principais dificuldades no ensino do tema.
1. O que é a Evolução Biológica?
É uma resposta ao mesmo tempo simples ou complexa, quando a gente fala em evolução biológica estamos pensando na mudança do perfil genético de uma população ao longo do tempo. Então se você tem frequências gênicas mudando numa população você tem então um evidencia de evolução. São as mudanças que ocorrem em diferentes gerações numa dada população. Isso pode resultar em mudanças tão grandes que duas populações que podiam se intercruzar deixam de poder fazê-lo e aí nós falamos então em dois táxons diferentes podem ser duas espécies diferentes ou dois gêneros. Essa diferenciação pode se ampliar ao longo do tempo. Agora, evolução não é simplesmente a formação de novas espécies, mas sim a mudança nas frequências gênicas nas populações.
2. Quais as evidências que existem em relação a evolução?
Existem muitas evidências sobre a evolução. O estudo de frequências gênicas em populações naturais é uma coisa que se tem feito a muito tempo e existem diferentes formas de fazer isso e não há nenhuma dúvida que pressões seletivas alteram profundamente as frequências gênicas.
3. Por que há tanta dificuldade por parte da população em aceitar a evolução?
Bem aí nós já entramos em terreno que é muito complexo eu diria. As pessoas têm dificuldade em aceitar ideias novas por conta das tradições que seguem. Eu diria então que populações que tem um perfil religioso muito conservador tem dificuldades em aceitar qualquer coisa que diga algo que não está de acordo com o que está tradicionalmente acostumado a seguir, seja em termos de teorias científicas seja em termos de vestuário, hábitos, comportamentos. Eu acho que isso é uma coisa natural de se esperar. Apesar que no caso de certas religiões como a católica esta dificuldade foi maior no passado e hoje ela não é tão grande apesar de ainda existirem, mas de alguma maneira nós tivemos um progresso interessante.
4. Quais as principais dificuldades em relação ao ensino de evolução como um todo e de evolução humana em especial?
Esta pergunta também é muito complexa, mas eu diria o seguinte: existem alguns obstáculos, se você puder chama-los assim, na linha de Bachelard, obstáculos epistemológicos ou se você pegar por outras teorias você vai falar em conceitos mais básicos, que subsomem os conceitos derivados. Enfim uma das primeiras coisas que se dominar para entender a evolução é a vastidão do tempo geológico, não que a mudança gênica dependa do tempo geológico pois a mudança gênica pode ocorrer de uma geração para outra. Mas o que é importante é entender que a diversidade da vida na terra só pode ser entendida se nós entendermos a vastidão do tempo geológico. Isto não é uma coisa trivial, isto requer um nível de compreensão que é bastante difícil de desenvolver. O próprio Charles Darwin teve muitas dificuldades em relação a isto e eu diria, já escrevi bastante sobre isso, o estabelecimento do tempo geológico na mente de Darwin foi um pré-requisito absolutamente indispensável para que ele pudesse pensar na evolução. Ele desenvolveu um conceito de tempo geológico, de tempo profundo, a visão moderna de tempo geológico muito antes de se pensar na seleção natural, antes de ter se convertido efetivamente em evolucionista. Ele ainda era algo como um criacionista quando ele teve provas irrefutáveis de que a vida no planeta Terra tinha muitos milhões de anos. E a partir disto ele pôde desenvolver então uma compreensão, que levou vários anos, do que ocorre com as populações de seres vivos. E em relação a evolução humana em especial, talvez aí voltemos a questão anterior de que populações que seguem certas tradições tenham dificuldade em aceitar ideias novas e uma delas de que a origem da espécie humana pode não ter sido exatamente como a descrita no livro do Gênesis que a tradição judaico cristã venera, alguns de uma maneira mais literal, outros de uma maneira mais figurada. Mas, enfim, existe essa referência da origem da espécie humana e a teoria científica oferece uma outra explicação.
5. Por que no imaginário popular a expressão “o homem evoluiu do macaco” causa tanta repulsa, fazendo com que as pessoas não aceitem a ancestralidade comum entre o ser humano e outras espécies próximas?
Bem, acho que essa reposta já está respondida pela anterior.
6. Em relação à História da Biologia, quais seriam os principais impactos das ideias desenvolvidas por Darwin? Por que esse autor demorou tanto para publicar sua ideia de seleção natural mesmo tendo a concebido muito anteriormente a data da publicação? Por que Darwin não aborda diretamente a respeito da Evolução Humana no livro “Origem das espécies”, trazendo essa temática só muito tempo depois?
Aqui são uma série de perguntas. Os impactos das teorias desenvolvidas por Darwin são vários entre outras coisas foi possível compreender uma série de fenômenos inexplicáveis. Não tem como discutir a resistência bacteriana a antibióticos se você não admitir a evolução. Você precisa entender inclusive de maneira a poder retardar o desenvolvimento dessa resistência se você não tiver um conhecimento darwiniano da evolução das populações você tem dificuldade em conseguir retardar esse processo de desenvolvimento de novos antibióticos, ou da necessidade de desenvolver novos antibióticos. Em relação à segunda questão eu diria o seguinte: não é verdade que ele tenha ficado, que ele estava com tudo pronto e que ele ficou hesitante em publicar tudo aquilo que ele já tinha. Não é verdade isso, porque ele tinha uma série de problemas a enfrentar. A seleção natural é uma ideia e Wallace também desenvolveu essa ideia, mas nem um nem outro, nem Darwin nem Wallace estavam falando rigorosamente de qualquer grande novidade. A questão não era apresentar um mecanismo, a Origem das espécies não é um livro que se resume a um mecanismo, que inclusive Darwin diz que nem é o principal, é outra passagem da Origem das espécies que pouca gente notou, mas, enfim, o fato é que no Origem das espécies Darwin discute uma série de questões e havia problemas a resolver. Ele teve que enfrentar uma série de problemas e alguns deles sem solução. Enfim, nós temos uma série de dificuldades que a teoria enfrentava. Darwin teve muitas ideias interessantes e apresentou nesse livro, acertou em muitas delas, aberrou em outras tantas. Por exemplo, quando ele fala nos fósseis vivos, ele fala de alguns animais serem fósseis vivos porque ele explica esses seres vivos dizendo que eles seriam habitantes de regiões remotas do planeta aonde não haveria seleção natural, não haveria pressão seletiva, enfim, e isso evidentemente é uma cosia que não se aceita hoje em dia, já na época gerou muita contradição. Por que não haveria competição, por exemplo, nas margens lodosas dos rios onde a piramboia habita? Só porque a região amazônica é distante da Europa? Não é uma explicação razoável para isso. Claro que a piramboia enfrenta pressões seletivas, tem que competir por uma série de parâmetros. Mas o fato é que Darwin demorou muito porque ele estava desenvolvendo ainda sua teoria, ele estava fazendo experimentos, inclusive sobre herança para entender, saber que precisava de um mecanismo ou pelo menos de uma maneira de explicar o surgimento de novas variações. Ele viu e colecionou uma série de exemplos sobre variações, tanto no estado doméstico, tanto aquelas produzidas ou acumuladas em fazendas e chácaras, mas também aquelas que podem ser vistas no estado natural, nas populações naturais. São os dois primeiros capítulos da origem das espécies, que depois vão virar um livro inteiro, portanto, eu diria, muito cuidado com esta história de achar que o Darwin estava com medo de publicar seu livro, não é verdade, esse livro estava em desenvolvimento e ele como a ser escrito efetivamente apenas um pouco antes, alguns anos antes, da sua publicação. Ele teve que mudar planos por que ele queria fazer um livro muito maior e teve que depois rapidamente resumir, ele foi copiando, copidescando trechos até que ele acabou desenvolvendo a versão que a gente conhece. Sobre a terceira questão, esta afirmação está rigorosamente errada. Darwin fala da evolução humana no livro Origem das espécies. O fato é que já na primeira edição, ele trata disso e o que ele diz é que ele não vai se aprofundar nisso porque ele precisaria de muito espaço e ele não tem esse espaço nesse livro que seria de fato um resumo de suas ideias. Então, por isso, ele cita, fala da seleção sexual que vai explicar a evolução humana. Ele estava baseado nas ideias de um médico com que ele tinha inclusive convivido, chamado (James Cowley) Prichard. Ele tinha conhecimento de como que a seleção sexual tinha produzido diferenças muito notáveis nas populações humanas e ele indicou isso. O fato é que na última edição do Origem das espécies, na 6ª edição, que foi publicada em 1876 ele muda isso, ele suprime esse trecho e aí pouca gente percebeu isso. O fato é que ele não cita isso mas, ele retira esse trecho que ele fala especificamente da espécie humana e isso foi muito mal compreendido por muita gente porque não se considera ao mesmo tempo que em 1871, portanto 5 anos antes, ele tinha publicado a Origem do homem, um livro baseado absolutamente dedicado a um tipo de seleção, que é a seleção sexual, e que ele já tinha indicado isso desde a 1ª edição do Origem das espécies, em 1859, que a seleção sexual seria a chave para explicar a diferenciação das populações humanas. Portanto, rigorosamente falando não é verdade que ele não aborda diretamente, ele aborda diretamente. Agora você pode me perguntar por que ele não se aprofundou nisto? Bem aí a questão do aprofundamento da questão da seleção sexual na espécie humana eu te recomendaria a leitura da minha tese de doutorado, está na rede, chamada ensino de evolução e história do darwinismo, o capítulo 2 é toda uma discussão sobre isso. Você vai encontrar ali uma discussão com calma sobre as razões de Darwin não ter tratado especificamente do homem mesmo de uma maneira com a qual ele poderia, você vai ver está na página 95 da minha tese onde, é uma tese que defendi em outubro de 1991, e tem, portanto, a bibliografia da época, mas você vai ver que uma série de artigos estavam sendo publicados exatamente sobre isso, Charles Darwin na 1ª edição de Origem das espécies, porque que Darwin não se aprofundou sobre o homem, e ai eu apresentei naquela época, em 91, a minha interpretação disso dizendo que ele não se aprofundou porque ele tinha uma série de fatores, entre eles pessoais e que teria a ver com o princípio da reversão ao estado selvagem que é justamente o assunto que o manuscrito de Wallace ele tem início com a discussão da reversão ao estado selvagem e de como a seleção natural pode atuar justamente eliminando aqueles que apresentam este tipo de reversão. O fato é que, no manuscrito que ele estava escrevendo, que ele chamava de "Big species book", esse livro não tinha esses problemas que o Origem das Espécies veio a ter, portanto, quando ele estava escrevendo o manuscrito daquilo que viria a ser o Origem das Espécies ele não tinha a limitação de espaço que ele veio a ter quando ele resumiu todas suas ideias. Ele simplesmente, no capítulo 6, que depois virou capítulo 4, acabou deixando aquela frase dizendo que ele teria muitos exemplos a dar sobre o efeito da seleção sexual sobre o homem, mas vai se abster de fazer isso porque senão ele pareceria muito superficial, que a abordagem deveria ser necessariamente superficial. Ele deixou efetivamente isso para mais tarde, onde ele publicou um livro enorme, em dois volumes onde ele pode desenvolver o texto com mais fôlego. Mas o fato é que, no manuscrito aparece no índice do capítulo que trata sobre seleção uma anotação a lápis chamada de teoria aplicada às raças do homem, isso está escrito à lápis, eu tive a oportunidade de trabalhar com esse manuscrito lá na Universidade de Cambridge, fiquei evidentemente em dúvida se aquilo era caligrafia de Darwin ou não, mas eu tive por sorte,a possibilidade de perguntar pra uma especialista que estava ali na Universidade de Cambridge, trabalhando junto com uma professora americana. Essa especialista me certificou que, de fato, aquela caligrafia era de Darwin. Ela está apenas a lápis, o manuscrito está todo escrito em livro de pena, mas esse item na introdução, na verdade como um roteiro que ele escrevia no início de cada capítulo escrevendo o que viria a ser desenvolvido. E ali não há dúvida de que, naquele capítulo sobre seleção natural, ele iria incluir uma discussão sobre teoria aplicada às raças do homem. Então, era exatamente esse material que ele tinha e o material que ele estava forneando naquela época, inclusive com várias marcas você vê o número seis romano (VI) ou ainda o arábico (6) escrito do lado de trechos com interrogação justamente trechos em outros livros, como do Prichard, que tratam especificamente da seleção sexual na espécie humana. Então, veja que o fato é que ele tinha tudo pra desenvolver isso, estava desenvolvendo, resolveu então possivelmente por contade, por um lado, o manuscrito do Wallace, que fez com que ele tivesse que publicar rapidamente, e por outro lado ele perdeu um filho nesse mesmo momento em que ele está tomando a decisão de resumir seu livro ele perde um filho, e esse filho eu apresentei em 91 na minha tese de doutorado e depois disso foi publicado num artigo no ano seguinte noJournal Of The History Of Biology, que é um resumo desse capítulo que está em português o artigo está em inglês, talvez seja mais fácil ver esse artigo. Eu tinha levantado a hipótese de que esse garoto tivesse a Síndrome de Down, que na época ainda não tinha esse nome e que a Síndrome de Down era vista como uma reversão ao estado selvagem, uma reversão ao estado mongólico, então os caucasianos seriam descendentes dos mongóis e algumas pessoas então nasceriam com essa reversão. Como Wallace em seu manuscrito trabalhava nessa linha, sem falar do caso humano, Darwin poderia ter usado o exemplo de Wallace dando o exemplo de seu próprio filho, mas isso evidentemente que a perda de um filho é um trauma profundo na vida de uma família e, possivelmente, isso também teve um efeito na decisão de não se aprofundar no caso da evolução humana. O fato é que passou muito tempo depois de mais de quase 20 anos, aparece então um livro escrito por um descendente do Charles Darwin que vai falar de uma caixinha que eles acharam, essa caixinha tinha uma série de recordações, estava num porão da família e, entre outras coisas, havia uma fotografia, havia várias cartas sobre uma das filhas que faleceu numa idade precoce, com 10 anos de idade, mas havia uma foto desse bebê da Daguerreotipo umas das primeiras fotos. Essa foto foi analisada por especialistas em Síndrome de Down que confirmaram a possibilidade de que, de fato, a criança fosse portadora da Síndrome de Down. Portanto, a minha hipótese, que era uma hipótese baseada só em cálculos matemáticos, acabou de alguma forma encontrando apoio nessa descoberta que foi feita só mais recentemente. Fica o alerta, porque nem o capítulo, nem o artigo poderiam tratar dessa foto porque ela ainda não era conhecida em 1991, quando eu apresentei minha tese de doutorado.
7. A ideia de seleção natural teve uma grande articulação com aspectos sociais e ideológicos no início do século XX, por exemplo, articulando-se com o movimento eugênico. Observando essas questões históricas, como podemos entender as relações que acontecem entre ciência e sociedade?
Bom, essa pergunta é de uma complexidade enorme. O fato é que, também eu escrevi várias coisas sobre isso, minha tese de livre docência, inclusive meninos do Brasil tem uma versão para alunos de ensino médio, então, eu recomendaria a leitura, eu discuto isso. Assim como eu fiz a tese de doutorado e depois fiz também um livro de evolução para a educação básica, da mesma maneira eu fiz o trabalho de livre docência e embora tenha demorado mais tempo, eu publiquei um livro que inclusive tem exatamente o mesmo título tratando justamente dessas relações entre darwinismo e eugenia, chama-se Meninos do Brasil: ideias de reprodução, eugenia e cidadania na escola, da editora do Brasil de 2012. Eu recomendaria, para entender essa questão que você desse uma olhada nesse livro, porque é uma questão muito complexa. Sua questão remete sim, já antes do início do século XX havia essa discussão sobre eugenia e muitos seguidores de Darwin foram grandes eugenistas, inclusive seu próprio filho Leonardo, que escreveu muito e teve um ativismo intenso na promoção da eugenia, não apenas na Grã-Bretanha, mas também em outros países.
8. As pesquisas atuais ainda podem trazer mudanças ou ampliar a Teoria Sintética da Evolução?
Bem, existe muita discussão agora a esse respeito. Existe, do ponto de vista teórico nenhuma teoria ser considerada inabalável, imutável, mesmo porque temos a obrigação de questionar o tempo todo aquilo que pensamos, os cientistas estão sempre se questionando ou sendo questionados. Portanto, é de se pensar que a teoria da evolução siga-se alterando. O fato é que nós temos já uma série de evidências de que a transmissão da informação genética não ocorre apenas da maneira vertical que nós conhecemos tradicionalmente, ou seja, passado de pais para filhos. Mas, também existe uma transmissão de horizontal, inclusive não apenas entre a mesma espécie, mas também com espécies diferentes, nós temos pedaços de DNA de bactéria, existem mecanismos não-mendelianos, digamos assim, de transmissão de características que podem se tornar hereditárias ou intrinsecamente hereditárias assim como nós temos fenômenos epigenéticos. Então, por exemplo, uma grande fome que uma população humana foi submetida na Europa teve consequências em várias outras gerações. Nós sabemos que traumas muito profundos de violência sentidos/ vividos por crianças, esse efeito ultrapassa a própria infância e nós temos um número desproporcional de suicídios nessas populações, nesses indivíduos. Enfim, esses efeitos têm a ver com a mudança, com a maneira como o material genético pode ser expresso e de como, nessa forma de expressão, ele pode produzir subprodutos e esse subprodutos podem através do citoplasma do óvulo, passar de uma geração a outra causando também algum tipo de efeito, portanto, os mecanismos não-mendelianos de transmissão hereditária também são importantes e isso sem dúvida alguma pode trazer algum tipo de mudança para a teoria atual da evolução.
9. A Evolução é considera um eixo articulador tanto da Biologia como ciência quanto para o Ensino de Biologia, quais as dificuldades para que um ensino com base no pensamento evolutivo se concretize na sala de aula de Biologia?
Novamente é uma pergunta muito complexa, nós temos uma série de problemas, eu dividiria basicamente em dois grandes grupos: os cognitivos e os socioculturais. Então do ponto de vista cognitivo, como te disse, enfim a compreensão do tempo geológico é um dos grandes problemas que nós temos inclusive no nosso currículo, inclusive na nova BNCC (Base Nacional Comum Curricular), nós temos para o ensino fundamental, nós temos muita ênfase em física e química, mas não temos nenhuma ênfase em geologia, em alguns países como França, como Portugal e Itália já desde oito, nove anos as crianças já começam a discutir aspectos relativos a tempos geológicos, ao passado geológico da terra, etc. Eles ficam pensando nisso durante muitos anos, enquanto que nós normalmente deixamos isso para o final do ensino médio, quando isso é abordado. Então do ponto de vista cognitivo a gente pode entender que existem dificuldades e essas dificuldades precisam ser enfrentadas com mudanças curriculares importantes. Do ponto de vista sociocultural, aquilo que a gente tinha discutido já, falado nas questões iniciais é a questão de enfrentar a tradição, enfrentar a maneira, como as pessoas tem dificuldade de mudar de opinião em relação à diferentes formas de pensar e não só teorias científicas.
10. Como especialista no ensino de evolução, que ‘recado’ (dica/sugestão/ideias/incentivo) o senhor deixaria aos professores da educação básica.
Essa pergunta é muito aberta, eu diria que estamos num momento absolutamente impar da nossa história, na qual estamos vendo várias ameaças, não apenas à educação, mas também à própria democracia, portanto é difícil dar algum recado agora para os professores, mas, entre outras coisas, tive a oportunidade de discutir a poucos dias em Cascavel com a rede pública da região, enquanto que pra mim foi muito importante, aprendi muito com eles, mas o fato é que eles mesmos dizem que a imposição que eventualmente vem a ser feita em relação a deixar de abordar o evolucionismo, ou ter que ensinar o criacionismo nas aulas de Biologia, eles vão enfrentar isso mantendo tanto quanto possível o ensino de evolução. Bom, o que eu posso sugerir também é a leitura de alguns livros, ou artigos, que eu mesmo fiz, se vocês quiserem conhecer meu pensamento e nessas obras eu cito vários outros colegas e autores. Mas um deles, vocês vão encontrar no livro "Ensino de Ciências" da coleção Pontos e Contrapontos da Editora Summus editorial, é um livro que foi escrito a quatro mãos, escrevi junto com Ático Chassot, é um livro muito interessante na sua estrutura. Vocês vão encontrar toda uma seção que trata dessas questões. Então, evolução biológica e religião é a parte final do livro, vocês vão encontrar na segunda parte, a partir da página 105 vocês vão encontrar uma discussão sobre questões relativas ao ensino de evolução especificamente a questão sobre evolução biológica e religião, vocês vão ter uma discussão bastante alongada e muito interessante, por que o Ático Chassot, uma pessoa que eu admiro muito, conhece bastante os aspectos da religião, ele mesmo tem uma formação religiosa, mas uma das seções se chama "Evolução biológica e religião", a outra seção se chama "Criacionistas como criptoevolucionistas", outra seção se chama "Ateísmo cientificista", outra seção se chama "Ensino da ciência, ensino da religião e estado laico”. Enfim, eu acho que vocês vão encontrar várias dicas de como enfrentar questão do ensino da evolução com o estado atual das coisas e depois aparece então toda uma bibliografia para esse capítulo específico e aí vocês vão encontrar muitas dicas inclusive de outros artigos, outros autores que tratam desse mesmo assunto. É isso, eu espero que eu tenha ajudado a resolver as dúvidas, a expressar que vocês entendam a minha compreensão do tema e fico à disposição de vocês para quaisquer outras questões. Um grande abraço.
Nélio Bizzo possui graduação em Ciências Biológicas pela Universidade de São Paulo (1981), mestrado em Ciências Biológicas (Biologia - Genética) pela Universidade de São Paulo (1984) e doutorado em Educação pela Universidade de São Paulo (1991). Foi aluno bolsista de pós-graduação da Liverpool University (1990-1) e realizou estágio na Leeds University (1992-3), com bolsa de pós-doutoramento da CAPES/MEC. Atualmente é coordenador científico do Núcleo de Pesquisa em Educação, Divulgação e Epistemologia da Evolução (EDEVO-Darwin), da Pró-Reitoria de Pesquisa da USP e do Projeto Temático BIOTA/Fapesp-Educação (2018-2023), que articula cinco instituições acadêmicas (USP, UFABC, UNIFESP, USCS e Instituto Butantan). Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Ensino-Aprendizagem, atuando principalmente nos seguintes temas: ensino de ciências, história da ciência aplicada ao ensino de ciências, ensino de evolução, e metodologia de ensino da ciência.

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GLOSSÁRIO
Antropoides: esse termo significa 'que possui forma semelhante ao homem'. Neste grupo estão os macacos com características como cérebros maiores, capacidade olfativa menor, caudas preênseis menores, ou reduzidas e herbívoros (em sua maioria). Este grupo é dividido em: macacos do novo mundo (Platyrrhini), mais primitivo dentro dos primatas, composto pelas famílias: Cebidae,
Callitrichidae e Atelidae (bugio, macaco-prego, macaco-aranha, e outros); e macacos do Velho Mundo (Catarrhini): apresentarem narinas mais próximas, voltadas para baixo e cauda geralmente curta. Composto pelas famílias: Cercopithecidae (babuínos), Pongidae ( orangotango) e Hominidae
(gorilas, chimpanzés, homem e diversas espécies fósseis).
Australopitecus: um gênero que possui diversos hominídeos extintos. Este gênero é bem próximo do gênero Homo.
Hominideos: 'hominídeo' é um membro da família Hominidae, que classicamente inclui todas as criaturas, vivas e extintas, mais relacionadas com o Homo sapiens do que com os atuais chimpanzés
Hominínios: termo se refere a subfamilia Homininae, que é composta pela espécie Homo sapiens, os antropoides extintos, gorilas e chimpanzés.
Símios: é a designação dada às espécies da ordem dos primatas atuais e extintos mais próximos evolutivamente do homem. São chamados símios os grandes primatas sem cauda (humanos, chimpanzés, bonobos, gorilas).
Paranthropus: o termo em si significa Paralelo ao Homem. Este é um gênero extinto de hominídeos.
AGRADECIMENTOS
Agradecemos à Universidade Estadual do Oeste do Paraná por oferecer todo o suporte ao desenvolvimento deste trabalho.
Agradecemos ao professor Dr. Nélio Bizzo por sua disponibilidade e compromisso em conceder a entrevista que compôs parte do produto educacional desenvolvido.
Agradecemos aos avaliadores deste trabalho por todas as contribuições.
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